#AUTORA                       

capitulo7







Convidada pelo homem, Lizzie entrou em sua casa e acomodou-se no sofá de veludo roxo da sala. E novamente, a menina se pegou enganada pelas expectativas.
Considerando que Lizzie achava que ele era uma espécie de médium, ela esperava que sua casa fosse cheia de decorações artesanais e esotéricas, com móveis humildes e todo o interior refletindo simplicidade e alegria. No entanto, diferente do exterior da casa, o lado de dentro era estranhamente glamoroso e elegante, com aparelhos eletrônicos modernos e móveis sofisticados. Tudo de muito bom gosto. “Ele deve ganhar bem fazendo sabe-se lá o que ele faz” – pensou enquanto olhava a sala admirada. “Será que sabem que ele tem isso tudo? Morando num bairro desse, não seria difícil ser assaltado...”
Raul serviu duas xícaras com chá de erva doce, entregando uma para Lizzie.
- Você tem uma bela casa! – exclamou com educação e sinceridade. Ele desenhou um sorriso de agradecimento e orgulho como resposta e depois bebericou seu chá. Lizzie imitou o gesto e acabou queimando a ponta da língua com a temperatura do líquido. Tentou conter a careta a fim de não parecer estúpida pela gafe, já que o vapor quente estava visível saindo da xícara.
Lizzie na verdade estava ansiosa e não se contentava de alívio. Tinha dezenas de perguntas pra fazer a Raul, mesmo sem ter nenhuma idéia de quem ele realmente era e fazia, e mais importante: de que forma ele poderia ajudá-la.
Mesmo muito afoita para esclarecer suas dúvidas, Lizzie estava tímida e não sabia como começar a falar. Olhava disfarçadamente pra ele, que estava sentado na poltrona se deliciando com o chá tranquilamente, sem mostrar nenhum incomodo com a temperatura da bebida.
- Er, então... Como sabia que eu... Que eu estava – Lizzie não conseguia organizar seus pensamentos e de achar um jeito de formular suas perguntas de forma que não parecesse abobalhada.
- Que você estava me procurando? Que você estava por perto? Ou que você estava perdida porque deixou a casa do garoto que você está atualmente atraída? – perguntou seriamente com os lábios a poucos centímetros de distância de sua xícara e uma sobrancelha arqueada. Lizzie inconscientemente ficou boquiaberta, impressionada. Ela não tinha certeza absoluta da pergunta que tentava fazer antes de Raul interrompe-la, mas qualquer uma das sugestões dele estaria correta. Ela queria saber como ele sabia de tudo aquilo!
- Você pode ler a minha mente, é isso? – O jeito inofensivo e infantil que Lizzie fizera a pergunta fora involuntário. Praticamente escapou do seu controle, e quando percebeu já tinha perguntado. Arrependeu-se imediatamente ao imaginar como sua cara devia ter parecido hilária.
Raul deu uma breve gargalhada com a pergunta da garota, deixando-a ainda mais sem graça.
- Mais ou menos.
Lizzie não ficou satisfeita com a resposta do homem, pois de nada lhe serviu a resposta. Continuava não entendendo nada e com medo de pensar, ainda achando que ele tinha a capacidade de invadir seus pensamentos e saber o que ela pensava.
Lizzie começava a assoprar o chá quando Raul pousou a dele na mesa de centro. Ela pôde notar pela visão periférica que ele a observava com um sorriso de canto. Ela fingiu estar focada em sua bebida, mas sentia-se realmente constrangida em saber que era analisada.
Segundos depois, Raul cruzou os braços e franziu o cenho.
- Você ao menos sabe o que é? – perguntou de repente, fazendo Lizzie virar-se imediatamente para fita-lo, mesmo não entendendo a pergunta.
- Como assim o que eu sou?
- Quem mandou você me procurar? – ele apertou os cílios. Os olhos de Raul eram esverdeados, mas toda vez que ele a observava daquele jeito intenso como se olhasse através dela, ficavam como duas esferas negras e brilhantes. Não literalmente como se a cor de seus olhos mudassem, mas era a forma como ele a encarava.
- Uma mulher do orfanato aonde fui criada... Ela soube de você através de alguma pessoa...
- E presumo que isso não foi em aqui em Trenton, certo?
Lizzie assentiu.
- Bom... Raul era meu nome em outro lugar, logo imaginei. Deixa pra lá – acrescentou com um gesto de mão.
- Ah sim, pensei que estava lendo meus pensamentos de novo... – disse sarcástica e desapontada, pois realmente tinha pensado isso.
- Se eu pudesse “ler” a sua mente, você acha que eu precisaria ter perguntado? – riu.
Lizzie mordeu os lábios, percebendo que ele falava algo coerente.
Se ele não lia seus pensamentos, o que podia ser então? Ela pensava.
- Qual o seu nome? – perguntou, e ela respondeu e estranhou o fato de que, realmente, ainda não tinha se apresentado. Não era algo incomum considerando como toda aquela situação de ter o encontrado aconteceu.
- Pois então Lizzie, conte-me seu problema! Depois dou as respostas que tanto deseja e procuraremos uma solução – disse com uma vez serena, bem diferente de seu olhar, que permanecia analisador sobre ela.
Lizzie ficou novamente desapontada por ele não saber imediatamente qual era o ‘problema’ dela, mas enquanto contava toda a sua vida com o máximo de detalhes que lembrava, ela sentiu-se aliviada por finalmente poder compartilhar tudo aquilo com alguém sem temer que esta pessoa a achasse psicologicamente afetada.
E ela contou absolutamente tudo, desde a sua infância com Teresa e a excentricidade da mãe, o orfanato e Fabrizzia, sua jornada a Trenton e os recentes acontecimentos com Martin, Lucy e Zack. E claro, principalmente, sobre Tito – que por sinal, continuava ausente desde o episódio na casa de Martin.
Raul ouviu tudo em silêncio, apenas a observando com o cotovelo direito apoiado no braço da poltrona e o indicador sobre uma das têmporas.
Contar sua história levou longos minutos, e Lizzie se quer viu o tempo passar enquanto falava sem pausas para respirar. Quando terminou, estava cansada e ofegante. Não só de mexer a boca, mas de forçar-se a lembrar de tudo que achava importante pra relatar.
Raul também respirou fundo, e depois de mais alguns segundos para digerir as histórias de Lizzie, se ajustou mais a frente da poltrona, quase na beira. Seus olhos fitavam o da menina seriamente.
- Lizzie, você sabe alguma coisa sobre demônios, anjos e coisas do tipo? – perguntou. Curvou-se para frente, apoiou os braços nas coxas e cruzou as mãos.
- No orfanato éramos influenciados a ler a Bíblia, mas eu nunca me interessei – respondeu envergonha pela sua ignorância – Não me lembro de nada, então acho que não sei...
- Pois bem, imagine e entenda o seguinte: Desde sempre no nosso mundo, algumas, digamos assim, espécies de demônios vagam no nosso meio. Claro que eles não andam por aí em sua aparência original! O mais próximo de natural que eles surgem pra nós é como o Tito aparece pra você. Uma mera sombra negra – Raul fez uma breve pausa para puxar um cigarro do maço sobre a mesa. Acendeu-o, deu uma tragada e jogou a fumaça no ar, que foi logo inalada involuntariamente por Lizzie – No entanto, eles não ficam por aqui a troco de nada. Demônios são seres cujo alimento é os sentimentos negativos como raiva e tristeza, e de todas as sensações exiladas quando nós humanos tomamos atitudes negativas, como traição e vingança.
Lizzie ouvia tudo atentamente, tentando compreender o que Raul falava por mais inacreditável que aquilo parecesse. Se ela não tivesse visto e vivido tudo o que viu e viveu, se fosse apenas uma humana normal, dificilmente ela acreditaria no que ele contava.
- Não é como se eles precisassem desses sentimentos e sensações para sobreviver, até porque eles não são serem mortais! Eles são seres mal intencionados, expulsos do céu basicamente por culpa nossa.  Então nada mais digno do que eles se vingarem transformando a vida de alguns humanos um inferno na Terra. É pura diversão pra eles! – Raul fez uma expressão de repulsa.
- Porque eles foram expulsos do céu basicamente por nossa culpa?
- A maioria das pessoas acredita que Lúcifer foi expulso porque era ambicioso e invejoso, que queria o lugar de Deus. Certo?
- Acho que sim... – respondeu com dúvida. Lizzie ouvira algumas histórias bíblicas no orfanato, mas lembrava-se muito mal delas, até porque dera pouquíssima atenção.
- Mas existe outra interpretação, e ela conta que Lúcifer foi, na verdade, expulso por que de certa forma sentiu ciúmes de nós... Ele achava que Deus amava os humanos mais do que seus anjos, e não concordava com isso. Afinal, somos imperfeitos e impuros...
Raul revirou os olhos.
- Nessa versão, fala-se também que Lúcifer estava determinado a provar que não éramos dignos da atenção e do amor de Deus, e com isso foi enviado para o inferno com todos os anjos caídos que concordavam com seu ponto de vista. Acabou então virando o Rei das Trevas, o Pai da Mentira e todos esses nomes que ouvimos por aí. Lúcifer e os novos demônios no começo queriam mostrar como éramos vulneráveis e pecadores... E foi então que Deus viu que o inferno e as peças que os demônios pregavam era úteis, pois mostrava a ele quem era realmente digno do seu paraíso. “É preciso conhecer a escuridão para se enxergar a luz!” – terminou com uma gargalhada irônica e outra tragada no cigarro.
Lizzie balançava a cabeça afirmativamente mostrando que compreendia o que Raul relatava, e que de certa forma, tudo parecia fazer certo sentido.
- Então... Tito é um demônio e eu sou um tipo de vítima das peças dele, é isso? – perguntou com a sobrancelha arqueada. Lizzie não achava justo ter passado por tudo que passou como um tipo de “prova”, principalmente porque muitas pessoas tinham sido envolvidas e sacrificadas por isso.
- Tito é um demônio, mas ele não te acompanha só pra te testar como você deve estar imaginando. Sua situação é bem diferente da realidade normal dos humanos.
- Qual é a minha situação então? – O coração de Lizzie pulava em seu peito, ansioso pela resposta. Sofria angustiada desde que se conhecia por gente, e saber que estava perto de entender sobre sua própria vida finalmente a fazia abrir um sorriso interno de alívio.
Raul fez uma pequena pausa de suspense que deixou Lizzie ainda mais nervosa.
Ele contraiu os lábios, tragou o cigarro e voltou a encará-la.
- Como eu disse anteriormente, a forma mais natural dos demônios entre nós é como o Tito aparece pra você...
- Sim sim, eu já sei – interrompeu agitada, mas logo em seguida se arrependeu ao ver Raul levantar a sobrancelha direita com olhar de reprovação – Desculpe, continue.
- Poucos demônios fazem isso, se expõem assim. Na verdade, são casos especiais em que isso acontece, e normalmente, é quando ele possui algum tipo de ligação com a pessoa que o enxerga – Levou novamente o cigarro os lábios antes de prosseguir – Claro que tem aqueles que fazem isso exatamente para confundir e assustar as pessoas, mas acompanhar alguém como Tito faz com você... – Balançou a cabeça negativamente.
Lizzie engoliu em seco, receosa com o que aquilo podia significar.
- Você sabe exatamente porque ele faz isso? – ela perguntou tentando parecer mais controlada.
- Eu tenho um palpite, e é o que me parece mais provável... Pelo menos, pelo o que sei e já vi – Raul apertou o cigarro no cinzeiro em cima da mesa de centro e sentou-se mais confortavelmente na poltrona, recostando-se.
Lizzie aguardou em silêncio, esperando que ele continuasse falando e contasse sua sugestão.
- Eu não posso confirmar ou saber de prontidão como isso pode ter acontecido, mas o meu palpite é de que você seja, digamos assim, filha de um demônio – respondeu, com um sorriso sarcástico. Lizzie arregalou os olhos com a resposta, mesmo achando que nada a poderia surpreender demais. A idéia era bastante absurda, e não era o tipo de coisa que alguém por mais diferente e atormentado que fosse, esperava ouvir. Muito menos compreender nos primeiros segundos.
Lizzie franziu o cenho.
- Como isso é possível? Quer dizer, isso pode acontecer com qualquer um? Você já conheceu alguém assim? – as perguntas não paravam de chegar a sua cabeça. Estava abalada, mas sua consciência não negava ou repreendia o palpite de Raul.
- Já conheci alguns casos sim. Não é raro, mas também não é algo tão comum quanto poltergeists! A questão é que o que eu tentava te explicar era que a maioria dos demônios prefere a possessão... Dominar o corpo de um humano. É desse jeito que eles gostam de perambular no nosso meio. Isso sim é bem comum! – esboçou um sorriso desanimado.
Lizzie não sabia se aquilo era realmente possível, mas estava buscando respostas com um homem que acreditava fielmente em histórias com demônios. No entanto, parte dela não se assustava com nada daquilo, e isso a fazia engolir as palavras de Raul com mais facilidade e credibilidade do que se fosse uma pessoa normal.
Lizzie já se sentia tão à vontade com a sugestão de Raul que a idéia de que sua mãe era possuída por um demônio passou em sua mente instantaneamente.
- Mas as pessoas possuem uma idéia errada sobre a possessão! O demônio não pode invadir o corpo de alguém sem sua permissão, seu consentimento ou... Que sua alma já seja condenada ao inferno, como um assassino por exemplo. E ele não ‘entra e sai’ de uma hora pra outra. Tem demônios que passam anos instalados no corpo humano!
A idéia de Lizzie se intensificou. Não achava que a alma de sua mãe estava condenada, mas era fácil acreditar que ela talvez tivesse dado permissão ou consentimento a algum demônio. Lizzie se lembrava bem de alguns artefatos estranhos do porão, onde Teresa se isolava. Podiam ser de algum tipo de magia negra a qual ela era envolvida.
- E eles, os demônios, possuem os humanos também por vingança?
- Não seria necessário fazer isso pra transformar a vida da gente um completo desespero! Tem alguns demônios que fazem isso, mas a maioria instala-se no corpo humano para ter a experiência de viver como tal. Há muitos prazeres carnais que satisfazem eles tanto quanto o sofrimento humano – Raul deu uma risada de repente – É até contraditório, porque eles acabaram entendendo o motivo dos humanos pecarem tanto e de se entregarem tão facilmente a vícios e etc. Exatamente aquilo que eles condenavam nas criaturas imperfeitas de Deus – terminou com um tom de deboche.
Raul ficou em silêncio, ainda rindo baixo sozinho, como se esperasse uma nova pergunta de Lizzie. Ela por sua vez ainda repassava as informações em sua cabeça.
- Porque você acha que eu sou filha de um demônio? – perguntou, finalmente, vendo que esta sim era uma pergunta importante.
Raul sorriu misterioso.
- Humanos normais não emitem energia! Pessoas possuídas, ou que carregam algum tipo de “herança” espiritual incomum, essas emitem! Cada um desses casos é uma energia diferente, é claro – deu uma piscadela – Eu conseguiria sentir a energia vinda de você à pelo menos uns dois ou três quarteirões daqui!
Lizzie mordeu os lábios, naturalmente apreensiva. Imaginou que foi assim que Raul pressentiu que ela estava por perto e acabou indo ao seu encontro na rua.
- Mas não é qualquer um que pode sentir essa energia, é?
- Não. Só quem também a possui...
- Demônios e quem têm herança espiritual de um demônio? – perguntou para confirmar se havia entendido.
- Exatamente. E ainda assim, é preciso trabalhar isso quando se trata de um “herdeiro”. – sorriu satisfeito.
Lizzie novamente arregalou os olhos com a confirmação. Tendo entendido aquilo, logo ela supôs algo.
- Então você é um dos dois, certo? – seu coração bateu forte involuntariamente. A possibilidade de Raul ser um demônio naturalmente a abalava. Ele com certeza não era um humano comum, mas ele aparentemente sabia demais.
Raul percebeu a apreensão estampada na cara de Lizzie, e não evitou soltar um riso.
- Bom, pelo o que eu expliquei, é evidente que sim. Mas fique tranqüila, eu não sou um demônio! – piscou. Lizzie suspirou aliviada e sorriu sem graça.
- Então você também é filho de um? – perguntou já sabendo qual era a resposta.
Raul assentiu sem parecer muito incomodado.
- Além da questão da energia exilada, todo humano com herança demoníaca acaba recebendo alguma habilidade sobrenatural... Como sua capacidade de cura e manipulação de mente, por exemplo – apontou.
E pouco a pouco a mente de Lizzie começava a clarear. Se aquilo era verdade ou não, no fundo, não importava muito. Ela estava percebendo um sentido para as coisas, um motivo, uma explicação para tudo que dizia a respeito de sua vida e origem. Era reconfortante.
- No meu caso, eu sou um sensitivo. Pessoas como eu e você podemos nos envolver com demônios e espíritos com mais facilidade. Ver, conversar e etc. Só que a minha habilidade como sensitivo é mais aguçada. Vai além disso! – contou com um tom que chegava a soar orgulhoso, assim como sua expressão.
- Tipo como? – perguntou curiosa. Saber que outras pessoas tinham habilidades paranormais não era algo difícil de acreditar como a possibilidade de ser filha de um demônio, mas conhecer alguém que compartilhava de uma situação similar a dela era ainda mais tranqüilizante.
- Se a pessoa estabelece uma forte conexão emocional ou mental comigo, eu posso encontrar fatos e memórias perdidas ou reprimidas em sua mente. Ou então, por exemplo, quando alguém está muito abalado, preocupado, atraído ou dando atenção a alguma coisa em certo momento, eu posso saber o que é. Quando você perguntou se eu lia mentes, eu respondi ‘mais ou menos’... Por isso! – Lizzie abriu a boca num sentido de que compreendera a explicação. Imaginou como tal habilidade se aplicava realmente no dia a dia de Raul, e como isso poderia acontecer. Era de uma forma bizarra muito fascinante.
Pensando em tais coisas, perguntou-se mentalmente se era possível ele saber o que ela pensava.  Olhou de canto para ele, que sorriu.
- Sim, eu sei. Se eu me focar na pessoa e ela estiver muito pensativa ou concentrada sobre alguma coisa, eu vou saber – exclamou num tom sarcástico, respondendo os pensamentos de Lizzie.
- Que incrível – suspirou. Ela imaginou todas as coisas que alguém com tal habilidade poderia fazer e ganhar. Seus olhos giraram pela casa, e Lizzie logo imaginou que todo aquele luxo e conforto provavelmente provinham de uma carreira sensitiva bem lucrativa.  
Raul, ainda mais jogado na poltrona, novamente soltou uma risada. Lizzie rapidamente entendeu que ele ainda extraia pensamentos daquele momento embaraçoso de sua cabeça.
- Sua habilidade parece bem mais fácil de executar do que as minhas... E também não parecem danosas para os outros – queixou-se, mordendo o canto da gengiva.
- Isso porque as suas são muito mais poderosas e perigosas! Eu posso conseguir muitas coisas com meu dom, mas você... Você pode fazer coisas estrondosas com os seus! – disse animado e com certo brilho nos olhos – Já conheci um menino com a habilidade de cura... Mas manipulação? É a primeira vez que eu vejo, com certeza! – sorriu.
Parte de Lizzie se sentiu especial ao ouvir aquilo.
- Trabalhando seus dons, você pode ser absolutamente fantástica! – exclamou gesticulando com as mãos. Lizzie respondeu com um sorriso tímido, mas sua cabeça explodia de informação e imaginação. Nunca parara pra pensar naquilo daquela forma. Sempre se vira como uma abominação, ou rejeitava sua realidade, pois é natural como ser humano, temer o desconhecido. No entanto, naquele momento ela tinha uma clareza maior sobre tudo aquilo, e sabia que sua percepção e seus sentimentos sobre as coisas que lhe incomodavam estavam mudando e dando espaço a emoções novas. Emoções positivas!
Mas entender e evoluir sua capacidade paranormal não era a prioridade. Não naquele momento. Por mais aliviada que ia ficando, outras coisas ainda a perturbavam.
- Você acha que minha mãe foi o demônio que me gerou? – perguntou depois de um tempo.
Raul já acendia outro cigarro. A pose super à vontade na poltrona, com aquele estilo meio desleixado e o cigarro entre os dedos, acabavam dando a ele uma aparência ainda mais jovem.
- Pode ter sido... Ou não – respondeu enquanto levando o cigarro aos lábios – Quer perguntar a ela? – sorriu malicioso. Lizzie ficou em dúvida. Não sabia se ele falava sério ou estava sendo irônico.
Então Raul arqueou a sobrancelha e se curvou pra frente como se quisesse olhar para Lizzie mais de perto antes de falar.
- Vamos pensar com lógica, Lizzie. Se sua mãe tivesse sido possuída por um demônio, ela não teria se isolado, ou ficado desleixada e anti-social. Ao contrário do que se pensa por causa da influencia de filmes sobre exorcismo, os demônios quando usufruem de um corpo humano, o fazem para provar de prazeres carnais. Sofrimento, dor, angustia desespero... Tudo isso eles absorvem sem precisar possuir o corpo – Raul se endireitou novamente na poltrona, voltando a cruzar as pernas – O que se vê em filmes é pura fantasia. E como eu disse, não é comum um demônio acompanhar alguém da mesma forma que Tito te acompanha... Logo? – seu tom desafiava Lizzie a pensar e completar a conclusão que rapidamente atacou sua cabeça. Mais claro do que Raul estava deixando, impossível.
- Tito é meu pai! – Lizzie abriu a boca – Tito é o meu pai? – insistiu e franziu o cenho. De todas as coisas que tinha ouvido naquele dia, aquela era a mais estranha e inaceitável. Não que não fosse lógica, mas Lizzie repudiava aquilo demasiadamente pra acreditar. Sem falar que a idéia de que Teresa era a entidade maligna de sua vida ainda lhe era fixa na mente.
Raul riu, inclinando a cabeça.
- É o mais provável.
Lizzie estalou a palma da mão na testa, abalada. Seu cérebro pedia um descanso de tanta informação, mas ela queria saber mais. A cada nova coisa que Raul contava, ela desejava se aprofundar. Afinal, não é todo dia que se pensa descobrir ser filha de um demônio e que herdou habilidades paranormais. Para quem se sentia um nada, Lizzie começava a questionar se aquilo então era realmente ruim.
- Mas Lizzie, não se iluda achando que ele te segue desde pequena por algum tipo de afeto ou amor fraternal – seu tom era sarcástico, mas ele parecia sério – Seres como ele não possuem mais tal sentimento – Raul disse no exato momento em que Lizzie começava a imaginar porque Tito então sempre parecia o culpado por todos os acidentes e coisas negativas à sua volta. Mais uma vez, Lizzie fez uma careta se sentindo estúpida por não ter pensado em algo tão óbvio.
- É, mas isso não faz muito sentido. Se ele não me segue por carinho fraternal, qual seria o motivo então?
Raul deu de ombros.
- Isso eu não sei dizer, mas lembre-se que eu disse que essa é a teoria mais provável diante de todas as circunstâncias – ele levantou o indicador. Lizzie assentiu desanimada e mordeu o lábio.
- Você sabe de tudo isso como? Sabe, sobre essas coisas? – perguntou curiosa. Tinha vontade de ter feito a pergunta bem antes, mas o assunto acabou virando a sua vida e os problemas dela, que só naquele momento ela voltava a ter uma chance de saber como ele podia entender tanto sobre um lado da vida que normalmente só os mortos saberiam.
- Meus pais eram rebeldes. Furtavam, praticavam vandalismo, usavam drogas... Pouco depois de se casarem, meu pai foi possuído por um demônio, e quase um ano depois eu nasci. A principio, a presença do demônio no corpo não fez muito diferença, pois ele só continuou fazendo o que fizera sempre – Raul falava sem demonstrar nenhuma emoção – O problema é que com o meu nascimento, minha mãe quis mudar de vida, enquanto meu pai só piorava... Vivia embriagado, não ajudava minha mãe a cuidar de mim ou do buraco deles... E em pouco tempo ela descobriu que ele a traía constantemente.  
Lizzie sentiu-se desconfortável naquele momento enquanto Raul contava sobre sua vida. Por mais que ele não demonstrasse revolta ou tristeza, falar sobre um passado doloroso sempre é ruim por mais madura e experiente que a pessoa seja.
- Minha mãe pediu ajuda a algumas pessoas, e nada mais normal que uma pessoa desesperada e sem informação recorra a um padre – Raul abafou um riso – É claro que qualquer religioso iria dizer que o comportamento de meu pai estava sendo influenciado por algo maligno, mas felizmente minha mãe conheceu um padre, digamos, diferente... Ele era como nós, e exatamente por isso virou padre. Não queria sentir-se condenado a uma ligação demoníaca natural – O sorriso de Raul então pareceu alternar entre serenidade e ironia, e sua expressão era de nostalgia – Ele conversou com minha mãe, explicou o que sabia a ela e depois acompanhou meu crescimento, também me ensinando. Ele viajava muito pra estudar casos verdadeiros sobre possessão e heranças paranormais, e eu o acompanhei até os 16 anos. Depois disso, passei a viver sozinho... Conhecendo o mundo e as pessoas.
Raul desfez a cara pensativa e voltou a fitar Lizzie.
- E os seus pais?
- Meu pai morreu de overdose quando eu tinha dois anos e minha mãe ainda mora em Lousiana – respondeu friamente e um silêncio se estabeleceu na sala por alguns segundos.
Raul ficou analisando-a enquanto ela pensava sobre a história dele. Obviamente ela cogitou a idéia de ele estar ‘acompanhando’ seus pensamentos e aquilo seria muito constrangedor, mas até ela que ela aprendesse uma forma de bloquear isso – se é que era possível – ela teria que se acostumar.
Lizzie bocejou; Estava fisicamente e psicologicamente cansada. Olhou para a janela e não soube dizer se a tarde começava ou terminava. Não sabia que horas tinha saído da casa de Zack, quanto tempo ficou andando até encontrar Raul e há quanto tempo estavam conversando. A questão é que ela estava exausta e com fome. O problema é que não tinha como ou o quê comer, e onde dormir.
- Você está sem rumo, certo? – Raul perguntou de repente. Lizzie assentiu envergonhada.
- Pode ficar aqui. Eu não fico muito em casa, mas este mês eu dei uma folga a mim mesmo. Poderei te ajudar com suas habilidades e a descobrir o que te aconteceu de fato. Enquanto isso fique a vontade para lanchar, tomar banho e dormir.
Lizzie queria dizer “não, obrigada” por orgulho, mas não podia se dar ao luxo de rejeitar a oferta. Precisava de um lugar pra ficar, e ela havia encontrando quem estava procurando. Então, sem escolhas, agradeceu timidamente.
- Vamos, vou te mostrar o quarto de hóspedes e depois a cozinha pra você preparar algo – Raul se levantou, gesticulando para que ela o acompanhasse – Na cozinha eu só me atrevo com o chá, então não conte comigo como cozinheiro! – exclamou rindo antes de virarem o corredor.
O quarto de hóspedes certamente era mais gracioso que do que todos que Lizzie já dormira. As paredes eram de cor lavanda, o armário de duas portas branco era moderno combinando com a cama de solteiro e a cabeceira; Uma pequena cômoda de vidro ficava o lado da cama, e nela tinha um vaso com lírios de plástico. Mas o que chamava realmente a atenção era a pintura num quadro emoldurado sobre a cabeceira. Na imagem havia um belo jardim colorido com pequenas fadas e lobos brancos desenhados delicadamente e com perfeição. 
- Acha que vai ficar confortável? – brincou Raul quando notou um sorriso de satisfação transparecer nos lábios de Lizzie.
- Com certeza. Muito obrigada!
E ela realmente ficou. Não só sobre o quarto, mas com a situação de forma geral. Raul não era tão fraternal quanto Martin, mas Lizzie se sentia muito mais a vontade ali do que na casa do ex-segurança. Não era pela casa ser mais aconchegante ou o quarto que dormia era mais bonito, e sim porque com Raul, Lizzie não mentia nem omitia; Ela não se sentia culpada ou com peso da consciência. Ela não precisou inventar uma história para conseguir abrigo... Raul conhecia toda a sua vida, e parecia saber mais sobre Lizzie do que ela mesma sabia sobre si.
 Com ele, ela também aprendia mais e se sentia menos anormal ou estranha. Com Martin e Lucy era como fazer parte de um lar, mas com Raul era como fazer parte do mundo.
A única coisa que faltava para sentir-se completamente satisfeita era Zack... Ela não queria admitir isso pra si mesma por orgulho, mas no fundo sabia que gostaria de vê-lo e estar com ele novamente...

Lizzie acordou no dia seguinte por volta de meio dia. Como não havia despertador e a janela ficava fechada por causa do ar condicionado – sim, também tinha isso no quarto de hóspedes -, ela acabou dormindo mais do que costumava. De fato, sair debaixo do cobertor foi o mais difícil.
No banheiro ao lado do quarto, Raul tinha deixado disponível uma escova de dente e toalha para uso exclusivo dela. Como havia tomado banho antes de dormir, apenas lavou o rosto e penteou o cabelo que só ficava rebelde depois que ela dormia. Quando voltou para o quarto, levou um susto com Raul sentado de pernas cruzadas na beira da cama. Ele segurava um cigarro e sorria.
- Bom dia! Trouxe isso aqui pra você – ele gesticulou para um vestido sobre a cama que não estava lá anteriormente – É de uma amiga que costuma vir aqui às vezes, mas ela não vai ligar. Use a vontade.
- Ok, obrigada – disse com um sorriso de canto. Raul se levantou e sumiu pela porta.
Lizzie se aproximou e esticou a roupa na sua frente. Era um vestido preto de mangas curtas, o tecido era bem leve e fluído. Ela encostou perto de seu corpo para ver se caberia, e ficou contente em ver que ia servir. O vestido batia um pouco acima de seus joelhos.
Na sala, Raul lia um livro de capa preta que Lizzie não conseguiu visualizar o nome, e não ousou perguntar. De qualquer forma, assim que ela chegou perto, Raul apontou para a mesa de jantar que ficava uns 3 metros atrás do sofá.
- Tome café. Tem pão, queijo, frutas, suco... Sirva-se! – exclamou ainda com os olhos atentos no livro. Lizzie assentiu. Estava com fome, e mesmo que aquele horário fosse mais propício para um almoço, tinha tanta opção na mesa que não sentiria falta de um prato de comida tão cedo.
Lizzie estava sentada junto à mesa comendo torradas e café, quando Raul se levantou depois de alguns minutos. Aproximou-se de sua cadeira e a olhou sem muita expressão.
- Se você quiser saber qual é sua relação com o Tito ou qualquer coisa mais definitiva sobre sua origem, você terá que perguntar à sua mãe – falou de repente. Lizzie quase engasgou com a torrada que rolava em sua boca naquele momento, estranhando completamente o que ele insinuava.
-Que? Como assim? Você tá falando sério? – Lizzie o encarou. Sabia que ver uma pessoa que morrera não era impossível, pois ela mesma já fizera isso outras vezes - inclusive, contra sua vontade. O motivo de sua surpresa era ele sugerir que ela perguntasse tal coisa à falecida mãe. E mais inacreditável de acontecer ainda: ela responder e ser sincera.
Raul inclinou a cabeça, fitando-a seriamente com a sobrancelha arqueada. Ele não está brincando, pensou.
- Ok, como? – perguntou.
- O contato com espíritos normalmente é feito quando a vontade e interesse vêm da parte deles – Raul torceu o nariz – Mas quando a alma pertence ao inferno, conheço uma forma de convocá-la por alguns minutos...
- Então a Teresa está no inferno? – a preocupação em sua voz ficou mais evidente do que Lizzie gostaria.
- Bom... Você me contou que ela se matou, e como você sabe, suicídio é passe direto ao inferno – Raul fez uma pausa ao perceber o olhar caído de Lizzie, que na verdade estava absorta ingerindo o que ele dissera e imaginando como Teresa deveria estar no inferno.
Ela não queria mostrar que se importava, mas era impossível não pensar na mãe sem pena sabendo que ela provavelmente estava no lugar naturalmente mais temido pelos humanos, ainda que a confirmação de sua existência não fosse cientificamente provada.
Lizzie não imaginava como seria o inferno, e tinha muita vontade de perguntar para Raul. Era capaz de que ele soubesse disso também, ou pelo menos, de algum pequeno detalhe. No entanto, ela estava mais preocupada em saber como falar com Teresa e perguntar a respeito de Tito.
- Que forma é essa?
- Um pequeno sacrifício “simbólico”. Vida por morte.
- Como assim? Eu vou ter que matar alguém?! – Lizzie arregalou os olhos.
- Não chega a tanto – Raul soltou uma risada, mas voltou ao estado de seriedade que ostentava desde o inicio da conversa – O que simboliza a vida, Lizzie?
Raul ficou em silêncio esperando que ela entendesse instantaneamente, mas a menina continuou quieta esperando que ele prosseguisse. Ele então olhou em direção ao peito de Lizzie, indicando visualmente uma pista sobre o que ele explicava.
- O coração? – arriscou subitamente.
- Enquanto o coração bombeia o sangue e o faz circular levando oxigênio para seu corpo e cérebro, você permanece viva. É claro que não vamos sacrificar um coração, mas podemos oferecer o sangue...
Enquanto Raul falava, Lizzie se lembrava de histórias e filmes de Terror onde pessoas ofereciam sangue em rituais de magia negra. Perguntou-se mentalmente se esse costume começou a ser realizado por pessoas que tinham real noção do efeito ou se tinha sido apenas palpite.
- A fórmula que eu aprendi consiste em derramar sangue vivo sobre algum pertence da pessoa com que se deseja entrar em contato.  Qualquer coisa que tenha ligação intensa e direta com a pessoa – A voz de Raul era firme, e seus olhos encaravam os de Lizzie buscando por total atenção à suas palavras como se ele estivesse passando um grande segredo – Você deverá se concentrar, se focar na necessidade de falar com essa pessoa... Derrama o sangue sobre a coisa dela, e então, chame-a! Ordene mentalmente que ela te encontre, e quando você sentir o ambiente ficar denso e pesado, você continua mentalizando sua vontade. É claro que o ritual só funciona quando o espírito está no inferno. E o processo só faz com que o espírito seja atraído para nosso mundo, mas a decisão de querer entrar em contato, de fato, com quem o chama, só depende do espírito.
Lizzie demorou um pouco para processar as informações. Todas as suas recentes conversas com Raul fizeram seu cérebro se acostumar com histórias esquisitas. Ainda assim, compreende-las e aceita-las levava alguns minutos como acontecesse com qualquer nova informação.
- Mas e se ela não quiser falar comigo? Se não quiser responder, ou não dizer a verdade? – mordeu o lábio. Essa era sua real preocupação.
- Otimismo Lizzie! Sua mãe já te visitou antes por vontade própria e sem necessidade. E além do mais, se ela for do jeito que você fala a pensa, não perderá a oportunidade de te incomodar – Raul sorriu sarcástico.
Lizzie engoliu um seco. Já tinha entendido o que era preciso ser feito, mas estava receosa quanto a fazer. Um encontro forçado com o espírito de sua mãe que estava no inferno para saber sobre um demônio que a perseguia... É no mínimo inquietante.
Se controlava para não ficar mais nervosa e ansiosa, mas sabia que não iria se esquecer disso tão fácil, e que quanto mais demorasse pra fazer o que era preciso, a ansiedade só iria aumentar. O melhor era adiantar o tal ritual e passar por tudo aquilo o mais rápido possível.
 - Podemos fazer isso hoje? – perguntou. O sorriso de Raul era de puro prazer.
- Como quiser! Vamos esperar a noite cair... Até lá, pense em suas perguntas para não se esquecer na hora, e prepare seu cérebro! É bom que não pareça frágil diante dela, de modo que você também não se distraia. Os espíritos não podem ficar muitos minutos por aqui... Seu tempo será precioso – avisou. Lizzie assentiu.
Raul deu uma piscadela, voltou a sentar-se na poltrona e emergiu novamente nas páginas de seu livro. Lizzie terminou seu café, mas continuou sentada com os olhos perdidos em algum ponto de seu campo de visão, deixando sua mente vagar livre e perdida sobre o que pretendia fazer naquela noite.
E a noite pareceu não chegar nunca!
Lizzie passou o dia inteiro olhando para o relógio, contando os minutos. O ponteiro parecia não se mover! Estava lá, paralisado em cima da mesma hora toda vez que Lizzie o consultava.
Sabia que devia pensar em quais perguntas faria, ou que o certo era controlar suas emoções, mas ela era humana. Pelo menos, parte dela era. E como humana, era muito difícil pensar e agir racionalmente quando a situação te força involuntariamente a ser emocional.
Bufou quando o sol se pôs e a lua brilhou no céu. Sentia como se tivesse esperado anos por aquela noite.
- Não devia ficar tão agitada – Raul retrucou ao passar pela sala. Viu Lizzie sentada na beira do sofá, batendo o pé insistentemente enquanto roia o canto das unhas – Eu nem preciso me concentrar nos seus pensamentos pra saber que passou a tarde toda agoniada.
Raul segurava sua xícara branca de porcelana na mão direita. Sentou-se na poltrona e começou a assoprar o chá. O odor do líquido cheirava a erva cidreira.
Um pensamento correu na cabeça de Lizzie e ela estalou os dedos olhando otimista para Raul.
- EI! Você pode ler os pensamentos dela? De uma pessoa morta? Porque assim, mesmo que Teresa minta pra mim ou não queira me responder, você pode saber a verdade – exclamou quase não acreditando que tinha pensado naquilo sozinha. Só faltava saber se era possível, e então, ficara ainda mais satisfeita.
- Bem... Teresa é um espírito, uma alma... Racionalmente, não faria sentido eu conseguir invadir a mente dela já que ela, biologicamente, não “teria uma”. Acontece que não deixamos de “pensar” quando morremos, então... Sim, é possível! – a conclusão foi dita em tom de suspense, depois Raul sorriu de canto – Mas você vai ter que deixar ela bastante envolvida na conversa. Precisa insistir no assunto pra fazê-la pensar nele mesmo que inconsciente, e mantê-la se lembrando disso por alguns minutos, até que eu consiga resgatar o máximo de pensamentos possíveis! - explicou voltando a ficar sério, encarando-a. Lizzie assentiu piamente, mas não resistiu o sorriso de contentamento.  Não obter a verdade não era mais uma preocupação.
Raul bebericou o chá, o que deixou Lizzie muito impaciente, e só depois anunciou que estava na hora. A palma de suas mãos começaram a umedecer rapidamente, e quase todas as partes do seu corpo também começaram a transpirar. Ainda que seu corpo demonstrasse nervosismo, o sorriso em seus lábios declarava que ela estava pronta para aquele momento e que jamais desejara tanto falar com sua falecida mãe.
Lizzie esperava que Raul a levasse para algum tipo de quarto escuro iluminado por uma luz vermelha macabra, cheio de objetos esquisitos e com um pentagrama desenhado no chão, bem típico em cenas de filmes de terror, mas a realidade não respondia a suas expectativas.
Quando o homem pediu que ela se aproximasse da mesa de jantar e sentasse, Lizzie torceu a boca em decepção.
Raul abafou uma gargalhada, e Lizzie teve certeza de que a “piada” era a ingênua imaginação dela.
- O que você pensou em usar para derramar o sangue? – perguntou enquanto apagava a lâmpada que iluminava aquela área da mesa de jantar, deixando acesa apenas a outra que mirava a mesa de centro entre o sofá e a poltrona.
- Bom, eu não tenho nada comigo, muito menos algo da Teresa – ela engoliu um seco. Não tinha certeza se no que havia pensado para utilizar iria servir, mas suas esperanças eram grandes! Tinha levado a tarde toda pensando em como resolver o problema – Então pensei que não tem nada de maior ligação viva com ela do que... Eu! Bem, ela me fez, me carregou no ventre, me pariu e me criou – a última palavra fez sua voz falhar. Sua expressão também era de dúvida, esperando que Raul acompanhasse sua lógica e concordasse com a idéia.
Por fim, o sorriso dele confirmou, assim como um leve balanço positivo de cabeça.
Raul pegou um punhal que estava pousado sobre o fim da mesa. Lizzie se perguntou como não tinha visto o objeto ali mais cedo.
- Tome! Use isto – ele entregou para a menina – Você pode cortar aonde achar que sentirá menos dor, e não é necessária muita quantidade de sangue! O importante é você derramá-lo sobre si mesma enquanto se concentra na presença de sua mãe. Obrigue-a  e visualize-a mentalmente enquanto se perfura e sente o sangue correr em suas veias até tocar sua pele – a voz dele estava calma, quase serena, como se tentasse transformar aquela situação bizarra em um conto de fadas. E de certa forma acabou ajudando, pois Lizzie não ficou nervosa com a idéia de se ferir com um punhal.
 Lizzie aguardou alguma ordem de Raul antes de fazer qualquer coisa. Ela segurava o punhal firmemente com a mão direita, e fitava a arma branca como se a vigiasse.
- Cuidado com o lugar que vai escolher cortar e a intensidade do corte. É importante que isso não te deixe tonta, abaixe sua pressão ou qualquer coisa do tipo que lhe faça desviar a atenção! – disse em voz baixa. Raul estava sentado na cadeira ao lado meio inclinada em sua direção. Ele não desviava os olhos de Lizzie – Pense, respire fundo e o faça como expliquei!
Ela obedeceu fielmente.
O primeiro pensamento que passou em sua cabeça era o pulso, mas o punhal parecia bem afiado, e o corte poderia acabar sendo fundo demais. Nenhuma outra parte do corpo parecia menos dolorosa ou mais prática de ser cortada do que a palma da mão, até mesmo para que depois pudesse virar e deixar o sangue cair sobre outra parte de seu corpo.
Deste modo, Lizzie fechou os olhos e respirou fundo; Ergueu a mão direita que segurava o punhal e o passou de leve sobre a palma da mão esquerda posicionada em cima das pernas. Foi um único movimento contínuo, mas não tão rápido quanto gostaria. Precisava se concentrar na sensação, e enquanto sentia a lâmina fina e gelada rasgar sua pele frágil, Lizzie repetia mentalmente a frase que tinha elaborado para aquele momento: “Teresa Horn, eu ordeno que você venha a este mundo e fale comigo!”.
A palma gélida de sua mão foi tomada pelo sangue relativamente quente que subia pelo ferimento horizontal causado pelo punhal, e em seguida, gotas caíram sobre sua coxa. Lizzie estava tão focada que mal sentia a queimação do machucado. No entanto, mesmo terminado o corte, a menina forçava as pálpebras a continuarem fechadas e a mente a se concentrar na frase.
Teresa Horn, eu ordeno que você venha a este mundo e fale comigo!
O ambiente em sua volta parecia combinar com a falta de cores e formas que os olhos fechados proporcionavam. Lizzie não ouvia nenhum som, ou qualquer mínimo ruído. Se ela não tivesse visto Raul sentar-se ao seu lado antes, nem suspeitaria que tivesse alguém ali próximo dela. O silêncio e a escuridão tomavam conta do seu estado de transe por vários segundos, até que depois de repetir a frase pela vigésima vez com o mesmo tom imperativo que entoou mentalmente na primeira, Lizzie sentiu o ar pesar em seu pulmão depois que inspirou. Além da maior densidade, um leve odor similar e familiar à carne podre acompanhou o ar ao passar em suas narinas.
Teresa Horn, eu ordeno que você venha a este mundo e fale comigo...
Seu coração acelerou no mesmo instante que suas mãos começaram a tremular. Tentava manter a repetição em sua cabeça, mas no segundo que arrepiou, sentiu a mão esquerda latejar e a leve onda de dor a fez se distrair. Sua mente se dividia em permanecer forte e manter o ritual, e prestar atenção na evidente mudança do ambiente. Quase pode ouvir a voz de Raul no fundo de sua cabeça dizendo “Concentre-se”.
Teresa Horn, eu ordeno que você venha a este mundo e fale comi...
Quando ia terminar a frase pela trigésima vez, uma voz diferente da dela ou de Raul ecoou. E Lizzie não ouviu dentro de sua cabeça. Seus ouvidos que captaram perfeitamente bem tal voz incomparável.
- Devo admitir que eu estou surpresa! –disse. Havia de fato surpresa em sua voz, mas o sarcasmo e o desânimo tão presentes em todas as suas falas também foram evidentes naquele primeiro contato. Lizzie abriu os olhos devagar, e ainda entre os cílios, pôde ver a imagem da mãe parada atrás da mesa de jantar a sua frente.




continua...